Brasílias, tantas… fetiches, sabores, vazios e cores

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Ronaldo M. Botelho, jornalista

A capital federal é plana,

mas só na geografia.

Pelo avesso desse território de patrimônios, há um cerrado de sinuosidades.

Entre a prancheta de Niemayer, a aridez dos militares, a abertura que não passou a limpo, o desastre inominável e o retorno à civilidade, essa ilha de belezas e dissabores absorveu algumas essências.

O Fetiche do poder é uma delas.

Ele está em tudo e em todos.

Das vias às vilas.

Do porteiro ao senador.

Do shopping à tenda.

Do lanche da rodoviária ao luxo do aeroporto.

Assim, que só um outsider como eu se surpreende ser tratado como senhor feudal em um bar noturno – supostamente liberal, infestado de fumantes de narguilé, com garçons pressionados a encher seu copo e limpar a mesa a cada 5min.

Para o equilíbrio com esses pilares de vaidades, porém, o poder nessas noites não tem face única. Felizmente.

A natureza, por exemplo, também reivindica suas luzes.

Até um pé de manga, jaca ou bananeira em plenas calçadas confunde e abstrai a ostentação de ferro, vidro e concreto pelos prédios de olhos eletrônicos.

Entre as distâncias dos cardápios em QR Codes, o humano ainda tem vez nessas acolhidas – seja no sorriso da artesã pernambucana, seja num refúgio de silêncio das telas, do funk, do futebol e do hard rock.

Já o dia nessas bandas tem sabores próprios.

Se a feijoada ou a carne de sol não dão conta para se lembrar que muitas culturas se cruzam aqui, umas comprinhas na Neguinho da Pimenta preenchem o cardápio dos gostos.

É só uma das tantas casas nordestinas da Ceilândia das feiras (sempre eles salvando).

É de encher os olhos: dos temperos aos sucos, dos grãos às farinhas, das manteigas aos azeites.

E se sobrar tempo, tem ainda a Feira do Rolo com suas novidades e cambalachos.

É o centro que resiste em existir na periferia.

Limonada que os candangos fizeram da segregação que começaram a sofrer, desde quando o outro lado do Paraíso os reduziu a um rejeito,

que encheu outros mundos.

Um desenvolvimento para além dos olhos e do coração do Brasil de JK.

Mas de vazios também se faz uma capital planejada.

Como na solidão do guarda de vestes imperiais no Alvorada.

No gigantismo dos corredores do Itamaraty.

Nos desertos dos saguões e das praças por toda a órbita dos três poderes.

Perplexidades que surgem sobre as contradições entre a generosidade comunista do genioso arquiteto e o seu estranho culto às curvas de beleza sem gente.

A opulência física para a exibição de miúdos segmentos, que não falam com gente sem gravata.

E falando em vazio, isolada é também a homenagem à Lídia, em meio ao Campus.

Para nunca se esquecer da criança covardemente violentada e morta há 50 anos por engravatados ligados ao regime das botinas — das brutalidades que marcaram os tempos de Médici, sobre a qual tentaram culpabilizar a esquerda.

Sob a secura do clima, o encarnado do cupinzeiro dá um tom conveniente no contraste ao azul do céu infinito.

Alimento fino para a letra do alagoano,

entre outros tantos.

E no entorno dessa sede de Mar, um Paranoá nos brinda por todo lado.

Nas praias do lago.

Nas garças e capivaras.

(à distância ) das lanchas dos playboys

No bronze sem padrão das tardes de chove não molha…

… enfim, o refresco popular que ainda sobrevive à gentrificação de Ibaneis.

Mas há ainda muita esperança nos caminhos de mobilidade sem rodas.

É o que dizem os Ipês-amarelos, que anunciam a Primavera desde a Asa Norte.

Dos desenhos das nuvens aos corredores das carregadeiras, tudo inspira para a foto dos namorados.

São as Brasílias muito além de um plano e de um piloto. E são tantas…

 

Uma Resposta

  1. Gostei da abordagem, e também da poesia. É bom sair da objetividade, de vez em quando, assim se enxerga mais.

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