*Marcelo Ribeiro Lima
Há pensadores que não se contentam em olhar o mundo — querem entendê-lo em seus mecanismos mais sutis. Michel Foucault* foi um desses raros.
O francês, com olhar preciso e ironia cortante, dedicou-se a estudar como o poder moderno domina as massas, descobrindo algo desconcertante: para funcionar, o poder precisa do crime — e precisa do criminoso.
O espetáculo da punição
Nos séculos passados, os castigos eram públicos — corpos dilacerados, multidão aplaudindo.
Hoje, o espetáculo é mais sofisticado: manchetes sensacionalistas, programas policiais, redes sociais clamando por ‘justiça’.
A punição deixou de rasgar a carne, mas aprendeu a modelar o comportamento, a corrigir as almas e a reafirmar o poder.
O crime como engrenagem útil
Foucault percebeu que o crime cumpre uma função prática: mantém o sistema penal funcionando.
Sem crime, o aparato punitivo perderia sentido — polícia, tribunais, prisões, toda uma estrutura se tornaria inútil. É um círculo vicioso que se vende como virtuoso:
‘Precisamos punir para viver em paz.’ Mas essa ‘paz’ tem endereço certo.
É a paz dos que moram longe do barulho, protegidos por muros, câmeras e empregados.
Enquanto isso, a punição se concentra onde o Estado é mais presente: nas periferias. A engrenagem é perfeita: cria-se o medo, alimenta-se o controle, preserva-se o privilégio.
Crimes que exigem punição legítima
Foucault não defendia o caos, nem a impunidade.
Ele criticava como se aplica a punição, não a necessidade de punir.
No caso do mundo atual, há crimes que exigem resposta firme e imediata do Estado, porque atentam diretamente contra a vida, a dignidade humana ou o funcionamento da sociedade:
– violência contra mulheres, crianças, idosos e pessoas LGBTQIA+;
– crimes hediondos em geral;
– e atos que ameaçam a democracia, a liberdade de expressão e as instituições fundamentais.
Nesses casos, o poder de punir não é instrumento de dominação, mas dever de proteção.
O Estado penal substitui o Estado social
O sociólogo Loïc Wacquant, seguidor de Foucault, mostrou como as sociedades neoliberais reduziram o Estado social e inflaram o Estado penal.
Menos escola, mais cadeia.
Menos saúde, mais polícia.
Menos oportunidades, mais repressão.
A pobreza, que deveria ser enfrentada com políticas públicas, passou a ser tratada como falha moral — e, portanto, ‘caso de polícia’. O desempregado vira suspeito; o periférico, alvo. A prisão se torna o destino natural de quem o sistema abandonou desde o berço.
Forte com o fraco, fraco com o forte
Aqui está a grande ironia do poder: o Estado se mostra forte com o fraco e fraco com o forte.
O pobre não tem advogado caro, nem influência social. O pequeno infrator, o morador de rua, o usuário de drogas — todos recebem o peso integral da lei.
O empresário poderoso tem recursos, o político tem foro, o banqueiro tem lobby. A lei se arrasta, as provas desaparecem, os prazos prescrevem.
A lei, que deveria nivelar, vira escada para uns e muro para outros.
Punir o necessário, não o conveniente
O desafio não é abolir a punição — é resgatar seu sentido original: proteger a vida e a sociedade.
Punir o que realmente destrói o tecido social — e não usar a punição como instrumento de controle político ou distração coletiva.
Punir o feminicida, o pedófilo, o agressor de idosos, o corrupto, o sonegador de impostos, o traficante e os que lavam dinheiro no crime organizado.
Punir aqueles que atentam contra a democracia e os direitos fundamentais.
Mas, ao mesmo tempo, impedir que o sistema use a punição para perpetuar desigualdades.
Enquanto não houver distinção clara entre punição legítima e punição funcional, continuaremos a aplaudir espetáculos que dizem fazer “justiça”, mas produzem exclusão.
Conclusão: o poder nunca é inocente
Vivemos em um tempo em que o crime virou espetáculo e a punição, entretenimento.
A opinião pública se alimenta de indignação, e o Estado se aproveita disso para ampliar seu controle.
E assim, o ciclo se repete: criamos o medo, exigimos punição e agradecemos ao poder por nos proteger do inimigo que ele mesmo produziu.
Foucault nos legou uma lição incômoda: o poder nunca é neutro, e a punição nunca é apenas justiça. Ela é, antes de tudo, um modo de manter as coisas como estão. A verdadeira coragem política, portanto, não está em exigir mais castigo, mas em romper a passividade que alimenta o poder. É compreender que a justiça não nasce do medo, mas da consciência — e que o poder, quando não é questionado, transforma a obediência em hábito, e o hábito em servidão, vestindo novamente as antigas fardas da tirania.
Punir o que destrói a vida é dever; punir apenas para manter hierarquias é rendição moral, alimentando o fortalecimento das elites no poder. Enquanto o Estado permanecer forte com o fraco e fraco com o forte, não haverá justiça, mas apenas uma paz aparente, que se faz de verdadeira — uma calmaria construída sobre o silêncio dos oprimidos, em tom de falsa harmonia.
E é justamente nesse silêncio – disfarçado de consenso, conforto e normalidade –, que o poder encontra seu abrigo mais seguro.
* Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 1926. Formou-se em Filosofia e Psicopatologia. Estudou o funcionamento de instituições como prisões, hospitais e escolas. Investigou a relação entre poder e conhecimento, mostrando como o crime e a punição podem servir ao controle social. Foi titular da Cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France (1970–1984). Ativista, apoiou trabalhadores imigrantes e fundou o Grupo de Informação sobre Prisões. Faleceu em Paris, em 25 de junho de 1984, aos 57 anos.
*Servidor público federal, com pós-graduação na área do Direito.

















