*Valdir Florisbal Jung
A recente decisão proferida pela Vara Estadual de Improbidade Administrativa, que impôs severas sanções ao ex-prefeito de Canoas, Jairo Jorge, bem como a ex-secretários e a uma empresa contratada, suscita uma profunda e necessária reflexão sobre os pilares que sustentam o direito administrativo sancionador no Brasil. Em uma análise preliminar, a sentença, embora exarada com aparente convicção pelo nobre magistrado de primeiro grau, carece, em tese, de elementos fundamentais para sua subsistência em instâncias superiores, notadamente no que tange à comprovação inequívoca do dolo específico, à demonstração de enriquecimento ilícito e à efetiva configuração de prejuízo ao erário. O presente artigo, respeitando a decisão, propõe-se a desconstruir alguns fundamentos da referida condenação. No atual estágio processual, qualquer conclusão sobre a responsabilidade definitiva dos réus é prematura e desconsidera garantias constitucionais basilares, como o princípio da presunção de inocência e o direito ao devido processo legal em sua plenitude, que inclui o reexame da matéria por tribunal colegiado.
É imperativo sublinhar, desde o início, que a decisão em comento é de natureza singular e provisória, constituindo apenas o primeiro degrau na longa escada jurisdicional. A interposição de recurso é não apenas uma faculdade, mas um instrumento essencial para a depuração da justiça, permitindo que o Tribunal, órgão colegiado e com maior distanciamento dos fatos, reavalie o conjunto probatório, as teses jurídicas e a correta aplicação da lei. A ausência de trânsito em julgado significa que a sentença não produz efeitos definitivos, e a presunção de inocência dos acusados permanece intacta. Tratar a condenação de primeiro grau como um veredito final é ignorar a própria estrutura do Poder Judiciário brasileiro e antecipar consequências que, ao final do processo, podem se revelar completamente infundadas. Portanto, a análise que se segue pauta-se pela serenidade técnica, afastando-se do clamor midiático para focar estritamente nos requisitos legais que, conforme se demonstrará, não foram preenchidos no caso concreto.
O ponto central de qualquer condenação por ato de improbidade administrativa, especialmente após as profundas alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021, reside na comprovação do elemento subjetivo, qual seja, o dolo. A nova legislação abandonou a modalidade culposa e estabeleceu um critério rigoroso para a caracterização da improbidade, exigindo a demonstração de uma vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito, com o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outrem. Não se trata de um dolo genérico, mas de um dolo
específico, direcionado para a prática do ato ímprobo com a finalidade de lesar os princípios da administração pública e obter vantagem ilícita. Meras irregularidades administrativas, escolhas de gestão que se mostrem infrutíferas ou mesmo a inobservância de formalidades legais, por si só, não configuram improbidade. É preciso que o agente público atue com a intenção manifesta de fraudar, de corromper, de se desviar dos seus deveres funcionais para atingir um desiderato ilegal.
No caso em análise, a sentença de primeiro grau fundamenta a condenação na alegação de que a contratação da empresa Aeromovel Brasil S.A. para a elaboração de estudos de um projeto de transporte, no valor de R$ 66.664.159,42, teria sido realizada de forma fraudulenta, burlando os princípios da administração pública. A contratação sem licitação de um projeto de alta complexidade tecnológica e natureza singular, como o aeromóvel, pode ser juridicamente defensável sob a ótica da inexigibilidade de licitação, a depender das justificativas técnicas apresentadas à época. A decisão de investir em estudos para uma solução de mobilidade urbana, ainda que o projeto não tenha sido implementado posteriormente por razões diversas, insere-se no âmbito da discricionariedade do gestor público.
Para que se configure o dolo exigido pela Lei de Improbidade Administrativa, seria necessário provar que Jairo Jorge e os demais réus, ao optarem pela contratação direta, tinham a consciência e a vontade de direcionar o contrato para beneficiar indevidamente a empresa ou a si próprios, e que agiram com o propósito específico de violar a legalidade. Não há nos autos, conforme as informações disponíveis, qualquer prova nesse sentido. Não há evidências de conluio, de recebimento de vantagens indevidas, de superfaturamento nos estudos contratados ou de qualquer outro elemento que transforme uma decisão administrativa, por mais controversa que seja, em um ato de improbidade doloso. A posterior suspensão do projeto, ocorrida em 2018, anos após os fatos analisados (2012-2015), não pode ser utilizada como argumento retroativo para imputar dolo aos gestores que, à época, tomaram uma decisão com base em um cenário fático e técnico distinto.
Importante lembrar que o atual prefeito de Canoas, Airton Souza, foi absolvido em uma ação de improbidade administrativa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2025. A decisão ocorreu após a Segunda Turma do Tribunal formar maioria para reverter a condenação em primeira instância que o havia sentenciado à perda da função pública e à suspensão dos direitos políticos. O argumento central foi a mudança na Lei de Improbidade, que passou a exigir a comprovação de “dolo específico” para a condenação.
Um dos pilares mais graves e socialmente repudiados da improbidade administrativa é o enriquecimento ilícito, previsto no artigo 9º da Lei nº 8.429/92. Esta modalidade de ato ímprobo se caracteriza quando o agente público aufere qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de seu cargo, mandato, função, emprego ou atividade. É a corrupção em sua forma mais explícita, em que o patrimônio público é diretamente convertido em benefício privado. Para que um réu seja condenado por improbidade com base neste dispositivo, é indispensável que a acusação e, consequentemente, a sentença demonstrem, de forma clara e precisa, qual foi a vantagem patrimonial auferida, como ela foi obtida e qual o nexo de causalidade entre o ato ilegal e o acréscimo patrimonial do agente.
Na sentença proferida contra Jairo Jorge, há uma lacuna intransponível a esse respeito. Em nenhum momento, seja na narrativa da acusação ou nos fundamentos da decisão, há qualquer menção, alegação ou prova de que o ex-prefeito ou os demais réus tenham se enriquecido ilicitamente. Não se aponta o recebimento de propinas, a aquisição de bens incompatíveis com a renda, a participação em esquemas de desvio de dinheiro ou qualquer outra forma de apropriação de recursos públicos. A própria análise de articulista que comentou o caso nas redes sociais é categórica ao afirmar que “não há referência a enriquecimento ilegítimo por parte dos réus”.
A Lei Complementar nº 64/1990 (Lei da Ficha Limpa) estabelece que, para a configuração da inelegibilidade em casos de improbidade administrativa, é necessária a condenação por órgão colegiado em ato doloso que importe, cumulativamente, em lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito. A falta de um desses requisitos – no caso, o enriquecimento ilícito – impede categoricamente a aplicação da sanção de inelegibilidade. Portanto, a discussão sobre a condição de “ficha suja” de Jairo Jorge, em decorrência específica desta sentença de primeiro grau, é juridicamente improcedente. A condenação, mesmo que fosse mantida em segunda instância, não teria o condão de torná-lo inelegível, pois lhe falta o elemento essencial do proveito patrimonial indevido. A ausência total de provas de que recursos públicos foram desviados para o bolso dos réus esvazia a acusação de seu conteúdo mais danoso e revela que a ação se fundamenta, no máximo, em uma discordância sobre a forma de gestão, e não em um ato de corrupção.
A sentença condenatória aponta um suposto prejuízo ao erário no montante de R$ 66.664.159,42, valor este correspondente à totalidade dos recursos pagos à empresa Aeromovel Brasil S.A. pelos estudos e projetos contratados. Tal conclusão, contudo, em tese, parte de uma premissa equivocada: a de que todo gasto público que não resulta na execução final de um
projeto se converte, automaticamente, em dano ao patrimônio público. Investimentos em planejamento, estudos de viabilidade e projetos são etapas necessárias e legítimas, mesmo que as fases subsequentes de execução não se concretizem por fatores supervenientes. O prejuízo ao erário, para fins de improbidade administrativa, pressupõe uma lesão efetiva e ilegal, como um desvio de recursos, um superfaturamento comprovado, uma renúncia ilegal de receita ou a realização de despesa sem a devida contraprestação.
No caso, os cerca de R$ 66,6 milhões foram pagos em contrapartida a um serviço que foi efetivamente prestado: a elaboração dos estudos e do projeto para a implementação do aeromóvel. Não há alegação de que a empresa não entregou o que foi contratado ou de que os valores pagos eram desproporcionais ao mercado para um serviço de tal envergadura técnica. O que existe é a constatação de que o projeto, por decisões administrativas posteriores e tomadas anos depois, foi suspenso. A suspensão de um projeto de infraestrutura pode ocorrer por inúmeras razões legítimas: restrições orçamentárias, mudança de prioridades políticas da gestão subsequente, inviabilidade de obtenção de financiamentos, questões ambientais imprevistas, entre outras. Atribuir a responsabilidade por um “dano” correspondente ao valor total investido no planejamento a quem deu o passo inicial de estudar uma solução para a cidade é criminalizar o próprio ato de planejar e inovar na gestão pública.
O dinheiro público foi empregado na finalidade para a qual foi destinado contratualmente – a realização de estudos. O fato de os estudos não terem se transformado em uma obra física não os torna, retroativamente, um prejuízo ilícito. O verdadeiro dano ao erário ocorreria se ficasse provado que os estudos foram pagos e não realizados, ou que seus preços foram artificialmente inflados para permitir o desvio de verbas, o que não é o caso, segundo as informações que constam da própria decisão. Não há qualquer prova de enriquecimento ilícito, elemento indispensável para a configuração dos atos de improbidade mais graves e para a imposição de sanções como a inelegibilidade. É indispensável diferenciar um gasto público com um projeto não implementado da figura jurídica do prejuízo ao erário, a fim de não se criminalizar o planejamento administrativo e a tomada de decisões discricionárias.
Trata-se, assim, de uma decisão que ainda será submetida ao crivo do Tribunal competente, onde se espera que uma análise mais aprofundada e técnica do conjunto probatório e dos requisitos legais prevaleça. A presunção de inocência não é uma formalidade, mas uma garantia fundamental, e até que sobrevenha o trânsito em julgado os réus são inocentes. A confiança na Justiça reside precisamente em sua capacidade de corrigir, em instâncias superiores, eventuais equívocos. Diante da manifesta ausência dos elementos constitutivos do ato de improbidade
administrativa, a expectativa é a de que a sentença seja integralmente reformada, restabelecendo a verdade dos fatos.
*Advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Luterana do Brasil (2002). Doutor em Direito pela Universidade La Salle (2024) e Mestre em Direito pela UniRitter (2020). Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Ulbra (2005) e em Docência do Ensino Superior pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2014). Conselheiro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS.


















Uma Resposta
Excelente advogado com um cliente muito ruim