Hoje, o Senado se prepara para votar um projeto de Código Eleitoral que, para dizer o mínimo, é uma afronta à democracia. Se aprovada, essa proposta revelará a verdadeira face de um Legislativo que parece disposto a se aprofundar no abismo da irresponsabilidade.
Cotas de gênero: Uma ilusão de progresso
Atualmente, a lei exige que os partidos garantam entre 30% e 70% de candidaturas de cada sexo. O TSE, em sua tentativa de garantir a integridade desse sistema, já identificou as situações que caracterizam fraudes. A nova proposta determina o percentual de ocupação de cadeiras por mulheres para 20%. O texto, confuso e ambíguo, sugere que um gênero competiria por 20% das cadeiras enquanto o outro ocuparia 80%, mas não esclarece como isso funcionaria na prática. Se nem as regras estabelecidas são respeitadas, que credibilidade podemos dar a essa nova redação? Vale lembrar que aproximadamente setecentos municípios não cumpriram as regras atuais de cotas de gêneros no país.
Autofinanciamento de campanha: Uma desigualdade escandalosa
A proposta de permitir que candidatos utilizem 100% de seus recursos pessoais é uma receita para aprofundar a desigualdade nas disputas eleitorais. Se atualmente já é difícil para candidatos sem grandes fortunas competirem, agora o Congresso avança para transformar essa desigualdade em um abismo insuperável. A regra atual de dez por cento já favorece os milionários que possuem campanhas riquíssimas e que causam grande desigualdade na disputa, com a possibilidade de colocar recursos próprios de forma ilimitada as eleições serão ainda mais desproporcionais.
Federações Partidárias e a Confusão Legislativa
O texto mantém um prazo de quatro anos para as federações, mas também dá aos partidos a liberdade de se desvincular sem penalidades no período da “janela”. Mais um exemplo de como o Legislativo se esforça para criar um labirinto jurídico que só servirá para entupir os tribunais com disputas sem sentido. Enquanto se discute “fidelidade partidária”, partidos não possuem nenhuma responsabilidade com fidelidade ideológica. Basta ver que PT e PL concorreram juntos em mais de oitenta municípios no Brasil na última eleição.
Propaganda eleitoral: O desperdício do dinheiro público
Os partidos poderão aumentar seus gastos com propaganda em rádio e TV, uma maneira escandalosa de continuar a espremer o bolso do contribuinte. O eleitor será bombardeado com mensagens pagas que drenam ainda mais os recursos públicos. Porém, a lei exigirá que seja informado que a propaganda é paga, apenas visando esclarecer ao eleitor que ele está pagando pelo que está vendo, para passar ainda mais raiva.
Fakenews: Um abaixo-assinado à Impunidade
Ao invés de endurecer as penas contra a disseminação de desinformação, o projeto propõe a redução da penalidade de quatro anos para apenas dois meses. Uma verdadeira piada de mau gosto e um grande incentivo para quem se alimenta das mentiras como forma de angariar votos.
Inelegibilidade: Um Constrangimento às Consequências
O projeto visa atenuar as consequências de crimes eleitorais, permitindo que a contagem do prazo de inelegibilidade se inicie apenas após a condenação. Um convite à impunidade que contrasta com a gravidade dos delitos que o Legislativo parece querer proteger. Nos crimes eleitorais, o prazo de oito anos começa a correr a partir de primeiro de janeiro do ano seguinte ao pleito em que ocorreu a infração, ou seja, caso o processo se arraste por mais de oito ano, o que é muito comum, nada acontece. Delitos como tortura, racismo, lavagem de dinheiro, corrupção, estupro, associação criminosa e tráfico de drogas se iniciará após a condenação por mais oito anos, para os outros delitos a contagem se iniciará à partir da condenação por colegiado.
Inteligência Artificial: Uma Regra Vazia
As novas regras sobre o uso de inteligência artificial serão inócuas, permitindo a manipulação de conteúdos sem qualquer penalidade real, apenas mais uma falácia legislativa. Quase nada muda em relação a fraca legislação atual, que já exige identificação de que se trata de inteligência artificial.
Prisão dos Eleitores: Um Retrocesso Inaceitável
A proposta de reduzir o prazo em que eleitores não podem ser presos antes e depois das eleições é só mais um ataque à liberdade e à participação democrática. A redução do prazo, que hoje é de cinco dias antes da eleição para até quarenta e oito horas depois, reduz para três dias antes e vinte e quatro horas depois.
Transporte Público e Quarentena para Agentes da Lei: Medidas Insuficientes
Embora a proposta de transporte público gratuito no dia da eleição seja um avanço, colocando em lei algo que já é prática em muitos municípios, a exigência de afastamento de militares e juízes um ano antes da eleição é insuficiente, já que não valerá para o próximo pleito. Para 2026 ainda valerá a regra atual de apenas seis meses.
Gastos Eleitorais: A Farra dos Impostos
O projeto abre as comportas para uma verdadeira farra com o dinheiro público, permitindo gastos absurdos em segurança pessoal em alguns casos e até mesmo em creches para filhos de candidatos. Uma afronta à ética e ao bom senso. Pagaremos com os nossos impostos inclusive escolas de filhos de até seis anos dos candidatos!
Prestação de Contas: A Oportunidade de Mais Irregularidades
O texto busca blindar parlamentares de punições, tornando quase impossível a desaprovação de contas. Uma manobra escandalosa que só serve para proteger os excessos e a corrupção. Hoje, se as contas forem desaprovadas, precisam devolver os valores e pagar multa de vinte por cento. A ideia é que não se possa mais desaprovar contas se as irregularidades não ultrapassarem dez por cento do montante de recursos usados pelo partido ou se houver má – fé comprovada, além de prever que as contas sejam automaticamente aprovadas se não forem julgadas em 360 dias, o que raramente acontece.
Voto Impresso: Um Retorno ao Passado
A insistência no voto impresso, já considerado inconstitucional, revela um desespero em desacreditar o sistema eleitoral, sem apresentar soluções viáveis para sua implementação. Um retrocesso que ameaça a segurança do processo eleitoral.
O mais debatido dos temas propostos é também um dos mais ridículos.
Estão enviando o mesmíssimo texto que já foi considerado inconstitucional pelo Plenário do STF, à unanimidade.
Não existe nenhuma viabilidade de que isso, de fato, ocorra.
Todo o comando normativo deve vir acompanhado de normas de organização e procedimento que permitam sua colocação em prática, o que, mais uma vez, não acontece.
No caso, a lei impõe novamente uma modificação substancial na votação, a ser implementada repentinamente, sem fornecer os meios para a execução da medida. O STF, na decisão que considerou o mesmo texto inconstitucional, já referiu “Por princípio, todas as mudam no processo eleitoral sao feitas aos poucos. A implementação progressiva evita que falhas pontuais contaminem o processo assim como previne o gasto de bilhões em tecnologias insatisfatórias. O voto em urnas eletrônicas, por exemplo, iniciou em 1996 e foi universalizado em 2002.”
Alteração súbita exigiria alterações no sistema de transporte, logística, pessoal, aquisições, treinamentos e metodologias, além do necessário esclarecimento da sociedade acerca dos novos procedimentos. Também haveria mudanças do ponto de vista do eleitor, abandonando – se os parâmetros atuais de cadastro (biometria) e voltando — se a confiar no documento de identidade para o voto em papel.
O custo estimado para a aquisição do módulo impresso para todas as urnas seria de aproximadamente dois bilhões, segundo levantamento do STF e seria adicional as urnas já existentes, e não um equipamento completo e integrado.
“Não é possível fazer uma mudança tão abrupta no processo eleitoral, colocando em risco a segurança das eleições e gastando recursos de uma forma irresponsável”, afirmou o STF quando do julgamento da inconstitucionalidade do mesmo texto.
Sequer existe previsão orçamentária para implementação de tal sistema já para a próxima eleição.
Fica claro que o objetivo não é colocar em prática o voto impresso, mas sim desgastar ainda mais a relação com o Poder Judiciário e o Executivo, tentando legitimar politicamente os discursos contra o sistema eleitoral que culminaram no oito de janeiro.
Multa por Ausência: Um Tiro no Pé
A proposta de aumentar a multa por não comparecimento às urnas é uma tentativa patética de forçar a participação, sem entender que o desprezo pela política é resultado da própria desilusão com representantes que se mostram cada vez mais distantes da população. A “terrível” multa de R$3,51 para quem não comparece às urnas e nem justifica, irá para cinco Reais, apenas para arrecadar um pouco mais de quem já não quer ir votar por estar irresignado e desesperançoso de tanto ser assaltado.
Existem muitos outros pontos a serem analisados em quase novecentos artigos sobre esse lamentável Código Eleitoral proposto.
Normalmente não haveria tempo hábil para implementar tais mudanças, pois caso seja aprovado amanhã, deve voltar a Câmara dos Deputados e ser votado antes de outubro, o que não costuma ocorrer.
Porém, tudo o que não existe é normalidade quando se trata de políticos tramitando privilégios para si.
Se essa reforma for aprovada, estaremos diante de um cenário em que o Legislativo, mais do que nunca, se revela como um antro de privilégios e desmandos. O povo brasileiro precisa ter estômago para resistir a essas manobras de parasitas que visam explorar ainda mais os cidadãos.
*O Autor é advogado, jornalista e articulista do Notícias da Aldeia