*Por Rodrigo Schmitt da Silva
Canoas, uma cidade que agora carrega um peso imenso de dor e luta, tornou-se o cruel cenário de uma das mais devastadoras tragédias que o Rio Grande do Sul já enfrentou: a enchente do ano passado. Este evento não apenas deixou marcas visíveis na paisagem, mas também feridas profundas nas almas de seus habitantes.
As águas, impiedosas e indomáveis, seguem seu curso, moldando tudo ao seu redor e enviando sinais de sua força. Quando a humanidade se ergue em ataque, a natureza responde com fúria, revelando sua imensa capacidade de devastação.
O tempo avança e, com ele, as águas se vão, mas as marcas permanecem. O tempo, esse cruel mensageiro, é o único que pode mostrar a verdadeira profundidade da dor. Apenas aquilo que resiste ao passar dos dias, sem perder sua importância, merece ser lembrado, seja na alegria ou na tristeza.
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As águas turvas e implacáveis arrastaram não apenas bens materiais, mas também sonhos, histórias e memórias de milhares de canoenses. O “cavalo caramelo” se tornou um símbolo de resistência, uma imagem que ecoou longe, levando a resiliência de Canoas a todos os cantos do Brasil e do mundo. No entanto, para muitos, a realidade é sombria e angustiante. O sofrimento se traduziu em pilhas de pertences perdidos, lares desfeitos e uma crise que parecia não ter fim.
Um ano se passou, mas as cicatrizes permanecem abertas. Ruas devastadas, obras paralisadas e um mar de incertezas continuam a assolar a cidade. Famílias ainda se encontram desabrigadas, lutando para reconstruir o que foi perdido, enquanto aqueles que conseguiram retomar suas vidas vivem à mercê de cada previsão de chuva, como se o céu pudesse desabar novamente sobre suas cabeças.
A união do povo canoense brilhou em meio ao caos. A solidariedade brotou de cada canto do Brasil, enquanto muitos governantes pareciam impotentes diante da calamidade. Mas esta coluna não se destina a discursos políticos; ela é um tributo às vozes que foram silenciadas.
Queremos dar espaço àqueles que perderam entes queridos, permitindo que expressem a dor que carregam nos corações. Buscamos algumas famílias, mas muitas ainda hesitam em tocar nesse assunto, um silêncio que ecoa a intensidade da dor que ainda persiste.
Ao abrir este espaço, buscamos honrar a memória dos que partiram e mostrar ao mundo o que significa viver uma tragédia. O silêncio dos familiares é eloquente, revelando que as feridas continuam abertas e que é extremamente difícil abordar o tema.
Oficialmente, contabilizamos cento e oitenta e quatro vidas perdidas na tragédia em nosso estado, sendo Canoas a cidade mais afetada.
Tínhamos vinte e seis desaparecidos, e na semana passada, encontramos José Everaldo Vargas de Almeida, quase um ano após a enchente. Isso expõe a falta de empenho na busca pela verdade em relação ao número de vítimas, bem como a negligência em lembrar aqueles que se foram.
A maioria das vítimas fatais foi esquecida pelos poderes públicos e autoridades, que falam em números, mas não destacam as vidas que se foram.
O que os familiares de Agnes da Silva Vicente (foto), um bebê de sete meses, poderiam nos dizer hoje, após um ano de luto, sobre o que aconteceu em suas vidas?
Os parentes de Jane Lúcia Gonçalves de Freitas, uma senhora de 64 anos que, ao tentar salvar seu marido, acabou perdendo a vida ao tentar resgatar suas duas gatas, seus seis cachorros e um passarinho, não gostariam de prestar uma homenagem a ela?
E quanto ao Sr. José Marison de Barros Costa, que sobreviveu a uma cirurgia cardíaca pouco antes da tragédia e foi encontrado apenas duas semanas após seu falecimento? Por que não há nenhuma homenagem a esses canoenses?
Milton Flores, um pai de dois filhos e avô de três netos, encontrado seis dias após sua morte, merece ser esquecido?
O senhor Paulo Dussarrat Riter, que optou por permanecer em casa e morreu deixando esposa, dois filhos e três netos, será que ninguém tem palavras a oferecer à sua família?
E Valtemir Paulo de Godoi, que perdeu a vida tentando resgatar pessoas na enchente, um homem que ia se tornar avô em novembro, não merece ser lembrado como um herói?
Infelizmente, o tempo continua a passar, e a dor se dissolve no esquecimento. As emoções diminuem, as lições da tragédia se esvanecem, e permanecemos vulneráveis e despreparados para uma nova calamidade.
Precisamos resgatar os sentimentos mais dolorosos, as feridas que ainda não cicatrizaram, para que essas vidas não tenham partido em vão. Devemos encontrar forças para manter a luta diária pela sobrevivência, sem esquecer o que ocorreu e trabalhar arduamente para que tragédias tão lamentáveis nunca mais se repitam, não apenas pela resposta da natureza à insensatez humana, mas principalmente pela negligência e incompetência dos seres humanos em lidar com seus próprios erros.
* Rodrigo Schmitt da Silva | Advogado e Jornalista
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