Um ano se passou, e a memória da enchente que devastou o Bairro Mato Grande ainda está viva em nossas almas. Naquela época, eu assistia, impotente, às imagens de outras cidades sendo engolidas pelas águas, sentindo uma tristeza profunda e acreditando que aquela tragédia nunca chegaria até nós. Mas o inesperado aconteceu: o meu bairro, o primeiro a ser atingido, recebeu um aviso tímido de evacuação. A promessa de ônibus para retirar os moradores na manhã seguinte deixou-me angustiado: seria um alerta para todos ou apenas para as áreas mais vulneráveis?
Um ano antes da catástrofe, muitos moradores já enfrentavam a dura realidade de suas casas alagadas por um mês no mesmo bairro, mas longe da minha casa. Protestos ecoaram pelas ruas, a mídia deu voz aos apelos e o Poder Público foi alertado sobre a ausência de um dique e de casas de bomba na região. O ex-prefeito, em uma tentativa de resposta, prometeu em suas redes sociais a construção de um dique e de duas casas de bomba, financiadas por uma parceria com a Corsan. Um ano depois, porém, a realidade se mostrou cruel: as promessas foram apenas palavras vazias.
Na noite fatídica do aviso de evacuação, avisei minha sogra, meu cunhado e minhas cunhadas sobre a urgência de deixar tudo. Subi o que pude para o andar superior da minha casa, na esperança de que a água não subisse até o teto. Preparei roupas para uma semana e deixei meus gatos com comida suficiente para poucos dias, acreditando que logo voltaríamos. Fomos para um hotel e, ao acompanhar as notícias, percebi que a gravidade da situação era muito maior do que eu imaginava, e que a crise se prolongaria por tempo indefinido.
Reunimos a família em um imóvel no litoral e, enquanto ajudava a organizar os resgates em grupos de WhatsApp, fui bombardeado por mensagens desesperadas. A batalha por organização se intensificou. Precisávamos saber onde os resgates aconteceriam e quantas vidas estavam em risco, enquanto barqueiros enfrentavam caos, com embarcações viradas e pessoas se lançando dos telhados em desespero. A cada minuto, a lista de pedidos de socorro parecia interminável, crescendo sem parar.
Decidi adquirir roupas de proteção e um bote inflável para ajudar. Contudo, ao chegar à água, percebi que o bote estava furado — uma sorte que tenha sido antes de entrar. Tentei trocar, mas o novo também apresentava problemas. Após uma semana, os resgates começaram a incluir os animais. Meus dois gatos estavam em casa, com comida escassa, e minha sogra também havia deixado na sua casa os seus cães e gatos.
Com uma boia, ração e água, fui à procura de uma carona. Junto a outros voluntários, distribuímos ajuda àqueles que permaneceram em casa. Mas as dificuldades eram imensas. Ao tentar resgatar meus gatos, meu pé ficou preso em um parafuso, resultando em uma fratura. Afundei nas águas contaminadas, mas, com o apoio de amigos, consegui entrar na casa e realizar o resgate dos meus gatos.
Na casa da minha sogra, apenas uma gata mostrava sinais de vida; deixei água e ração para os outros animais que não consegui resgatar. Nos dias seguintes, continuei a lutar contra a destruição, mas a cena era devastadora. O odor das águas, uma mistura de esgoto e decomposição, parecia estar impregnado em mim, mesmo após o banho, como uma marca indelével.
Quando minha família retornou da praia, enfrentamos a dura realidade: meu cunhado havia perdido tudo dentro de casa, assim como minha sogra e cunhadas. A água invadiu minha casa, chegando a quase dois metros de altura. Adaptamo-nos a um apartamento alugado, vivendo como se estivéssemos acampados por mais de seis meses. Conseguimos reconstruir nossas casas, os animais da minha sogra e os meus sobreviveram, mas voltamos a viver no local da tragédia, endividados e aterrorizados, temendo que a história se repetisse.
A solidariedade emergiu em meio à tragédia. Cada um ajudou como pôde, auxiliando na arrecadação e distribuição de doações. Mutirões de limpeza nas casas tornaram-se comuns. Naquele momento, discussões sobre política, religião ou futebol foram deixadas de lado; todos estavam unidos em um propósito maior.
Enquanto os aproveitadores tentavam se beneficiar da situação, a maioria das pessoas afetadas e os voluntários de fora mostraram uma vontade genuína de ajudar, merecendo nossa eterna gratidão.
A cada chuva, meu coração se aperta, ciente do pavor que sentem aqueles que foram atingidos. Um ano após a tragédia, a indignação cresce ao perceber que ainda estamos desprotegidos. As perdas materiais são insignificantes diante da dor de quem perdeu entes queridos, mas a dor das perdas materiais também é intensa. O que restou nas calçadas não era apenas lixo, mas histórias de vida, memórias e lutas que nada pode apagar.
Existem culpados, e eles devem ser responsabilizados. Que a Justiça, mesmo que não seja a dos homens, encontre aqueles que falharam com a população.
Espero que Deus se apiede de nós e que a natureza não resolva dar mais uma resposta a insensatez humana tão cedo, dando o tempo necessário para que medidas de proteção ocorram e que se evite que aquela terrível tragédia de um ano atrás se torne apenas mais uma no futuro.
*Advogado e Jornalista |Colunista do Notícias da Aldeia
Uma Resposta
Comovente este relato que retrata a realidade de milhares de pessoas. Que Deus tenha misericórdia de nós e cobre dos responsáveis pela negligência e descaso com a vida de inocentes. Meu carinho e solidariedade a todos os que foram atingidos pela enchente de Maio de 2024…