Me criei em zonas alagadiças de Uruguaiana, sou um filho de enchentes, conheço bem o martírio de quem sofria anualmente com isso, claro, não nessa magnitude, mas foi lá que aprendi o termo “abobado da enchente”.
Em minha juventude o termo era para designar quem se atrasava, ou não percebia que a enchente estava chegando.
Na forma coloquial, seria um tolo ou desatento com algo de forma excessiva.
Em Canoas, com a enchente, temos dois tipos que se enquadram:
Primeiro, sem nenhum demérito, é possível interpretar que seria alguém atônito, perplexo ou confuso diante de uma situação de inundação. Nesse sentido, a pessoa pode estar chocada, desorientada ou surpresa com a magnitude dos danos e impactos causados pela tragédia que nos assolou.
Vi muitas pessoas assim na primeira noite, abandonando tudo, atônitos.
Quero dizer aqui, que o nosso “abobado da enchente” não é quem sofreu o infortúnio de tudo perder. A expressão tem um contexto específico e uma interpretação diferente, aborda as atitudes pós-tempestade e consequentemente a inundação.
Um “abobado da enchente política”, poderia ser tranquilamente aquele que está torcendo contra seus irmãos desafortunados por causa de politicagem barata. Pense nisso, se coloque no lugar de quem perdeu tudo. E você aí fazendo a política que tudo crítica e se autopromovendo na desgraça alheia, quem faz o bem não precisa de propaganda, pessoas que mandaram roupas, cobertores, comida e remédios, são totalmente anônimos. Mas o “intermediário” que recebe isso se autopromove, se dizendo o “salvador da enchente”.
A bondade deve ser silenciosa, mirem-se no exemplo da Madre Teresa de Calcutá, com a voz serena nunca buscou reconhecimento, só o bem para os menos favorecidos.
Não se ofendam com o termo, eu sou um “filho da enchente” desde minha infância, sei o que é perder tudo, coisa que muitos só descobriram agora, aliás, deve ter gente em Canoas que sofreu as duas grandes enchentes.
O que não dá para aguentar é os agouros, enfrentaremos um longo período de recuperação, de reconstrução material e mental. Ficaremos marcados como uma geração que terá medo de voltar para seus lares, mas que terão que ir, pois o pouco que restou é o que irão reconstruir.
Falo com pessoas, os que mais sofreram, são os que mais positivos são. Mas, sempre terá um “abobado da enchente política” para dizer: que não dará certo.
Vamos mostrar para eles que isso não é verdade, juntos nós podemos.
ORIGEM DA EXPRESSÃO
(…) Foi em 1941, que surgiu a expressão “abobado da enchente”, criada pela cheia do Rio Guaíba, que avançou sobre o centro de Porto Alegre, deixando 70 mil pessoas flageladas, nos meses de abril e maio.
Dizem as pesquisas que um surto de leptospirose fez a população da Capital entrar em pânico e a boataria se encarregou de divulgar os sintomas da doença — febre alta, calafrios, urina turva e nos casos mais graves uma hemorragia em alguns órgãos do corpo que acabavam em óbito.
Quem vacilava ou se mostrava distraído numa discussão arriscava ser um “abobado da enchente”. (…)
(Fonte Rogério Mendelski | Jornalista | Abobados da Enchente | 03 de novembro de 2018)
Achei próprio para o momento, a beleza desse poema escrito há 2 séculos.
Quando a tempestade passar,
as estradas se amansarem,
E formos sobreviventes
de um naufrágio coletivo,
Com o coração choroso
e o destino abençoado
Nós nos sentiremos bem-aventurados
Só por estarmos vivos.
E nós daremos um abraço ao primeiro desconhecido
E elogiaremos a sorte de manter um amigo.
E aí nós vamos lembrar tudo aquilo que perdemos e de uma vez aprenderemos tudo o que não aprendemos.
Não teremos mais inveja, pois todos sofreram.
Não teremos mais o coração endurecido
Seremos todos mais compassivos.
Valerá mais o que é de todos do que o que eu nunca consegui.
Seremos mais generosos
E muito mais comprometidos
Nós entenderemos o quão frágeis somos, e o que
significa estarmos vivos!
Vamos sentir empatia por quem está e por quem se foi.
Sentiremos falta do velho que pedia esmola no mercado, que nós nunca soubemos o nome e sempre esteve ao nosso lado.
E talvez o velho pobre fosse Deus disfarçado…
Mas você nunca perguntou o nome dele
Porque estava com pressa…
E tudo será milagre!
E tudo será um legado
E a vida que ganhamos será respeitada!
Quando a tempestade passar
Eu te peço Deus, com tristeza,
Que você nos torne melhores.
Como você “nos” sonhou.
(K. O’ Meara — Poema escrito durante a epidemia de peste em 1800)
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